sexta-feira, setembro 24, 2010

Devia morrer-se de outra maneira

José Gomes Ferreira

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos DSC08427
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

2 comentários:

  1. Bela maneira de morrer...só quando quisessemos, suavemente, sem sofrimento e com tempo para nos despedirmos dos mais queridos. Não é assim, mas, como também não sabemos como vai ser, não vale a pena pensar nisso. Às vezes a morte até chega assim... de mansinho, quase sem darmos conta; é boa desta maneira, mas tem um inconveniente...não nos dá tempo de avisar que amanhã não estaremos cá. Resumindo, ela não é boa nunca! Um beijinho e ...gostei muito!
    Emília

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  2. Devíamos morrer desta forma e quando quiséssemos. Depois de chamar os amigos faríamos um banquete e, de madrugada, só restariam os mais íntimos. Ninguém choraria.
    Adorei o poema, porque a morte está sempre conotada com perda, sofrimento, luto.

    Bom fim de semana

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